Nada como a frieza dos números para tomarmos consciência da amplitude
do problema: mais de 60 milhões de mulheres entre os 20 e os 25 anos já estavam
casadas ou viviam maritalmente antes de terem 18 anos. Mais de 31 milhões vivem
no sul da Ásia, em países com o Bangladeche. Em África, na República Centro Africana,
Chade, Guiné, Mali e Níger, mais de 60 por cento das mulheres casam ou vivem
maritalmente antes de atingirem a idade adulta.
Há uma relação entre os casamentos precoces e a pobreza. As meninas
e jovens em situação de pobreza e menos escolarizadas tendem a casar e ser mães
mais cedo que as demais. No Peru, 45 por cento das mulheres com menos
oportunidades casam antes dos 18 anos, comparativamente a apenas cinco por
cento entre as que têm melhores condições socioeconómicas. Esta relação existe
também com a escolaridade formal. No Zimbabué, 48 por cento das mulheres com a educação
básica casaram antes dos 18 anos, mas a percentagem sobe para 87 por cento entre
as que não frequentaram a escola.
Ainda que estes números sejam avançados pelas Nações Unidas,
é difícil saber o número exato de casamentos precoces – há tantos sem serem oficiais
nem registados que a contagem torna-se quase impossível. Apesar da eventual imprecisão, repito: nada como a
frieza dos números para ajudar à consciência da gravidade do problema. Moçambique,
por exemplo, está entre os dez países do mundo com mais casos de casamentos precoces,
infantojuvenis e forçados. Segundo a ministra moçambicana do Género, Mulher e
Ação Social, 48 por cento das raparigas do país casam-se antes de completar 18
anos. De facto, é na África subsariana e no sul da Ásia que a prática do
casamento precoce de meninas é mais comum. No Médio Oriente, noutras regiões da
Ásia e no norte de África, o casamento durante a puberdade ou pouco depois dela
é habitual em determinados segmentos da população. Em algumas regiões da África
ocidental e oriental e no sul da Ásia, o casamento acontece ainda mais cedo, frequentemente
antes da puberdade.
Há várias razões que explicam estes factos. Por um lado, as
famílias com menores recursos consideram uma menina como um fardo económico, um
risco à manutenção das tradições e o seu casamento é visto como uma maneira de
assegurar a sobrevivência e a “honra” do agregado familiar de origem. Há
também, em certas culturas, a ideia de que o casamento protege as meninas
contra os perigos da violência sexual e, de uma forma geral, confiam-na aos
cuidados de um “protetor” do sexo masculino escolhido pela família. O casamento
infantil também é considerado como um meio de evitar que as meninas engravidem
fora do casamento. Este tipo de casamento pode igualmente ser inspirado pela
discriminação sexual: casam-se as meninas mais cedo para assegurar a sua
“docilidade” e submissão à família do marido e maximizar as suas gravidezes e
fertilidade.
Além da violência que representa forçar, negociar, decidir
casar crianças (até aos 18 anos de acordo com a Convenção dos Direitos da
Criança) com adultos, o casamento precoce tem outras consequências para o
futuro das crianças e das sociedades. Desde logo, a negação do acesso à Educação,
porque uma vez casadas, as meninas deixam geralmente de ir à escola. Ao nível
da Saúde, registam-se gravidezes prematuras que fazem subir em flecha as taxas
de mortalidade e morbilidade materna e infantil, incluindo fístulas obstétricas
e baixo peso à nascença. Por outro lado, as adolescentes ficam mais vulneráveis
a infeções transmitidas sexualmente, incluindo o VIH /SIDA.
A violência, por sua vez, não se faz apenas sentir do ponto
de vista sexual. Acontece regularmente as crianças e jovens serem punidas e
vítimas dos chamados “crimes de honra” cometidos pela família quando recusam
casar-se ou escolhem o futuro cônjuge contra a vontade dos pais e/ou comunidade
de pertença.
Eliminar os casamentos precoces, forçados e de crianças (tal
como acabar com as mutilações genitais femininas, assunto que mereceria, por si
só, outro artigo), é uma das metas dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável
(ODS) da Agenda 2030 das Nações Unidas, em vigor desde Setembro de 2015. O
documento foi negociado, adotado e aprovado por 193 países, entre os quais
Portugal. “Os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável são a nossa visão da
humanidade partilhada e um contrato social decisivo entre os líderes mundiais e
as pessoas”, afirmou na ocasião o secretário-geral das Nações Unidas, Ban
Ki-moon. A Agenda 2030 convoca os países a iniciarem esforços para alcançar o
cumprimento dos objetivos nos próximos 15 anos. Já este ano será apresentado o
primeiro balanço.
A Agenda 2030 impõe compromissos a todos os países, pelo que
Portugal não é exceção, também em matéria de esforço local e regional para o
fim global dos casamentos precoces, forçados e combinados como forma extrema de
violência e discriminação sobre meninas e jovens. É um assunto que não consta apenas das estatísticas de
países geograficamente mais ou menos próximos, de maior ou menor proximidade
linguística e sócio-histórica. As migrações voluntárias e forçadas fazem que os
casamentos (formais ou informais) e as uniões forçadas e precoces possam
ocorrer nas rotas migratórias, nos campos de refugiados e nas diásporas.
Para cumprir os ODS é preciso também conhecer melhor o que
se passa na Europa e em Portugal. Qual o nosso ponto de partida, também ao
nível dos casamentos e uniões precoces e combinadas? Frequentemente, também cá são
apresentadas razões de ordem cultural ou de prevenção – honra da família e
proteção das meninas e jovens.
De acordo com as Nações Unidas, se a tendência se mantiver,
em 2020 haverá 142 milhões de meninas casadas antes de chegarem a adultas. Dez
anos mais tarde, em 2030, teremos, em média, 15.1 milhões de meninas, com menos
de 18 anos, a casar anualmente. É preciso fazer alguma coisa, porque os
casamentos infantis, precoces, forçados e combinados são uma grave violação dos
direitos humanos das crianças à educação, saúde, igualdade e autonomia com
consequências devastadoras para sociedades que queremos livres de violência e
discriminação, onde os direitos humanos – sem deixar ninguém para trás – sejam
a base e a estrutura do desenvolvimento e da cooperação.
(Artigo publicado no jornal "Sol", 30.jul.2016)
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