30 julho 2016

Casamentos precoces e desenvolvimento sustentável

Nada como a frieza dos números para tomarmos consciência da amplitude do problema: mais de 60 milhões de mulheres entre os 20 e os 25 anos já estavam casadas ou viviam maritalmente antes de terem 18 anos. Mais de 31 milhões vivem no sul da Ásia, em países com o Bangladeche. Em África, na República Centro Africana, Chade, Guiné, Mali e Níger, mais de 60 por cento das mulheres casam ou vivem maritalmente antes de atingirem a idade adulta.

Há uma relação entre os casamentos precoces e a pobreza. As meninas e jovens em situação de pobreza e menos escolarizadas tendem a casar e ser mães mais cedo que as demais. No Peru, 45 por cento das mulheres com menos oportunidades casam antes dos 18 anos, comparativamente a apenas cinco por cento entre as que têm melhores condições socioeconómicas. Esta relação existe também com a escolaridade formal. No Zimbabué, 48 por cento das mulheres com a educação básica casaram antes dos 18 anos, mas a percentagem sobe para 87 por cento entre as que não frequentaram a escola.

Ainda que estes números sejam avançados pelas Nações Unidas, é difícil saber o número exato de casamentos precoces – há tantos sem serem oficiais nem registados que a contagem torna-se quase impossível. Apesar da eventual imprecisão, repito: nada como a frieza dos números para ajudar à consciência da gravidade do problema. Moçambique, por exemplo, está entre os dez países do mundo com mais casos de casamentos precoces, infantojuvenis e forçados. Segundo a ministra moçambicana do Género, Mulher e Ação Social, 48 por cento das raparigas do país casam-se antes de completar 18 anos. De facto, é na África subsariana e no sul da Ásia que a prática do casamento precoce de meninas é mais comum. No Médio Oriente, noutras regiões da Ásia e no norte de África, o casamento durante a puberdade ou pouco depois dela é habitual em determinados segmentos da população. Em algumas regiões da África ocidental e oriental e no sul da Ásia, o casamento acontece ainda mais cedo, frequentemente antes da puberdade.

Há várias razões que explicam estes factos. Por um lado, as famílias com menores recursos consideram uma menina como um fardo económico, um risco à manutenção das tradições e o seu casamento é visto como uma maneira de assegurar a sobrevivência e a “honra” do agregado familiar de origem. Há também, em certas culturas, a ideia de que o casamento protege as meninas contra os perigos da violência sexual e, de uma forma geral, confiam-na aos cuidados de um “protetor” do sexo masculino escolhido pela família. O casamento infantil também é considerado como um meio de evitar que as meninas engravidem fora do casamento. Este tipo de casamento pode igualmente ser inspirado pela discriminação sexual: casam-se as meninas mais cedo para assegurar a sua “docilidade” e submissão à família do marido e maximizar as suas gravidezes e fertilidade.

Além da violência que representa forçar, negociar, decidir casar crianças (até aos 18 anos de acordo com a Convenção dos Direitos da Criança) com adultos, o casamento precoce tem outras consequências para o futuro das crianças e das sociedades. Desde logo, a negação do acesso à Educação, porque uma vez casadas, as meninas deixam geralmente de ir à escola. Ao nível da Saúde, registam-se gravidezes prematuras que fazem subir em flecha as taxas de mortalidade e morbilidade materna e infantil, incluindo fístulas obstétricas e baixo peso à nascença. Por outro lado, as adolescentes ficam mais vulneráveis a infeções transmitidas sexualmente, incluindo o VIH /SIDA.

A violência, por sua vez, não se faz apenas sentir do ponto de vista sexual. Acontece regularmente as crianças e jovens serem punidas e vítimas dos chamados “crimes de honra” cometidos pela família quando recusam casar-se ou escolhem o futuro cônjuge contra a vontade dos pais e/ou comunidade de pertença.

Eliminar os casamentos precoces, forçados e de crianças (tal como acabar com as mutilações genitais femininas, assunto que mereceria, por si só, outro artigo), é uma das metas dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030 das Nações Unidas, em vigor desde Setembro de 2015. O documento foi negociado, adotado e aprovado por 193 países, entre os quais Portugal. “Os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável são a nossa visão da humanidade partilhada e um contrato social decisivo entre os líderes mundiais e as pessoas”, afirmou na ocasião o secretário-geral das Nações Unidas, Ban Ki-moon. A Agenda 2030 convoca os países a iniciarem esforços para alcançar o cumprimento dos objetivos nos próximos 15 anos. Já este ano será apresentado o primeiro balanço.

A Agenda 2030 impõe compromissos a todos os países, pelo que Portugal não é exceção, também em matéria de esforço local e regional para o fim global dos casamentos precoces, forçados e combinados como forma extrema de violência e discriminação sobre meninas e jovens. É um assunto que não consta apenas das estatísticas de países geograficamente mais ou menos próximos, de maior ou menor proximidade linguística e sócio-histórica. As migrações voluntárias e forçadas fazem que os casamentos (formais ou informais) e as uniões forçadas e precoces possam ocorrer nas rotas migratórias, nos campos de refugiados e nas diásporas.

Para cumprir os ODS é preciso também conhecer melhor o que se passa na Europa e em Portugal. Qual o nosso ponto de partida, também ao nível dos casamentos e uniões precoces e combinadas? Frequentemente, também cá são apresentadas razões de ordem cultural ou de prevenção – honra da família e proteção das meninas e jovens.

De acordo com as Nações Unidas, se a tendência se mantiver, em 2020 haverá 142 milhões de meninas casadas antes de chegarem a adultas. Dez anos mais tarde, em 2030, teremos, em média, 15.1 milhões de meninas, com menos de 18 anos, a casar anualmente. É preciso fazer alguma coisa, porque os casamentos infantis, precoces, forçados e combinados são uma grave violação dos direitos humanos das crianças à educação, saúde, igualdade e autonomia com consequências devastadoras para sociedades que queremos livres de violência e discriminação, onde os direitos humanos – sem deixar ninguém para trás – sejam a base e a estrutura do desenvolvimento e da cooperação.

Quando em 2014 vi a exposição do UNFPA “Novas demais para casar” ou quando, já este ano, com o Fórum Europeu de Parlamentares e a Women Deliver conheci a Girls Not Brides, vi e li rostos e gritos silenciados que também podem viver ao meu lado.

(Artigo publicado no jornal "Sol", 30.jul.2016)


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