22 outubro 2016

Não à mutilação genital feminina


Quem, nos últimos meses, passou num dos três aeroportos internacionais do continente português, pôde ver uma campanha de sensibilização contra a mutilação genital feminina. A campanha chegou ao fim, mas não podemos esquecer o assunto: a Mutilação Genital Feminina (MGF) causa sofrimento e mortes evitáveis. A prevenção e a proteção são os caminhos que importa percorrer.
A MGF é qualquer tipo de intervenção no órgão genital externo da mulher que se faça por razões culturais ou de tradição e que não tem justificação médica. É uma espécie de ritual de passagem para a idade adulta de crianças e adolescentes do sexo feminino e vista pela comunidade como uma honra e um reconhecimento social da família da vítima e da própria vítima. Muitas vezes, é confundida com preceitos religiosos. A idade em que é realizada varia entre o nascimento e a primeira gravidez, mas é mais comum entre os quatro e os catorze anos. Normalmente, é feita sem anestesia, com um objeto cortante: uma faca, um vidro, uma lâmina ou uma navalha.
A prática tem consequências graves e irreversíveis. Entre as complicações mais frequentes encontram-se a dor intensa devido ao corte de terminações nervosas e de tecido genital, hemorragias, dificuldades na eliminação de urina ou de sangue menstrual. Como normalmente os utensílios utilizados não são esterilizados, há risco de transmissão de infeções durante o procedimento (tétano, hepatite B e VIH/SIDA) que podem levar à morte.

Sabemos que é crime. Sabemos também que não é um requisito religioso e que as tradições mudam com os tempos... Por isso, é tempo de dizer não a todas as práticas prejudiciais à saúde e contrárias aos direitos humanos de meninas e mulheres. É tempo de reafirmar que Portugal, acompanhando o repto da ONU e do Conselho da Europa, tudo fará para que a MGF seja erradicada na próxima geração. Para isso ser possível, precisamos de respeitar e promover a igualdade de género, o acesso à educação e à saúde, incluindo a saúde sexual e reprodutiva. A nova Agenda 2030 e a implementação dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável têm também esta obrigação: dizer não e pôr fim à MGF é um requisito de desenvolvimento e direitos humanos. Não podemos esquecer os 200 milhões de meninas e mulheres que vivem com algum tipo de mutilação genital. A própria ONU lança o alerta de que se nada for feito, poderá haver mais 15 milhões até 2030. E não se pense que a MGF é muito localizada: é verdade que esta prática ancestral tem uma incidência especial em algumas regiões de África e da Ásia, mas há casos registados em mais de meia centena de países.

Em Portugal, os casos de MGF são residuais. Nem por isso devemos pensar que o assunto não tem a ver connosco. A campanha nos aeroportos portugueses procurava evitar que as meninas sejam levadas para África e submetidas à excisão. É uma prática corrente entre algumas comunidades residentes no nosso país. A comunidade guineense, sobretudo, merece uma atenção e um cuidado particular: na antiga colónia portuguesa, 44 por cento das mulheres entre os 15 e os 49 anos foram excisadas; 30 por cento das meninas até aos 14 anos sofrem também a mutilação. Há casos conhecidos de crianças que foram levadas para a Guiné-Bissau para que a mutilação fosse aí praticada. Lá, como cá, a prática da MGF é crime, mas a tradição tem um peso muito importante na sociedade guineense e a mutilação continua a ser praticada junto de algumas etnias apesar de todos os esforços das organizações locais.
Numa visita de trabalho que fiz à Guiné-Bissau, a convite das Nações Unidas, tive oportunidade de ver in loco os efeitos da MGF e constatar o trabalho de entidades como o Comité Nacional Para o Abandono de Práticas Tradicionais Nefastas à Saúde da Mulher e da Criança. Mas as dificuldades são mais do que muitas. A presidente do Comité, Fatumata Djau Baldé, ela própria dada em casamento com apenas nove anos de idade e submetida a MGF, tem liderado um vasto programa de prevenção e de proteção, mas confronta-se com uma dura realidade: a de mulheres que, embora sabendo que a MGF é crime, foram educadas para preservar as tradições e a cultura e submetem-se à excisão.
Durante o verão, a campanha “O Direito a Viver Sem Mutilação Genital Feminina” mobilizou serviços, associações, migrantes e viajantes: as vozes fizeram-se ouvir. Na mesma linha de ação pelos Direitos Humanos e Desenvolvimento foi aprovado por unanimidade um voto que a propósito do Dia Mundial da População refere: “Investir nos direitos humanos de todas as pessoas, sem deixar ninguém para trás, investir no acesso universal aos programas e cuidados de educação e saúde sexual e reprodutiva é fazer o investimento crucial em sociedades saudáveis, produtivas, igualitárias e num futuro mais sustentável.” 
Pelos direitos, igualdade, saúde e participação de todas as crianças e jovens, precisamos de mais e melhor cooperação entre países, parceiros multilaterais e sociedade civil. É tempo de olhar a saúde, a educação e a cooperação para o desenvolvimento como investimentos onde todas as pessoas contam. 
(Artigo publicado no jornal "Sol", 22.out.2016)

1 comentário:

  1. Esta tradição é das que se pode dizer muito má ( por tudo aquilo que aqui foi descrito) por isso há que acabar com ela. Não posso estar mais de acordo.

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