Quem, nos últimos meses, passou num dos
três aeroportos internacionais do continente português, pôde ver uma campanha
de sensibilização contra a mutilação genital feminina. A campanha chegou ao
fim, mas não podemos esquecer o assunto: a Mutilação Genital Feminina (MGF)
causa sofrimento e mortes evitáveis. A prevenção e a proteção são os caminhos
que importa percorrer.
A MGF é qualquer tipo de intervenção no
órgão genital externo da mulher que se faça por razões culturais ou de tradição
e que não tem justificação médica. É uma espécie de ritual de passagem para a
idade adulta de crianças e adolescentes do sexo feminino e vista pela
comunidade como uma honra e um reconhecimento social da família da vítima e da própria
vítima. Muitas vezes, é confundida com preceitos religiosos. A idade em que é
realizada varia entre o nascimento e a primeira gravidez, mas é mais comum
entre os quatro e os catorze anos. Normalmente, é feita sem anestesia, com um
objeto cortante: uma faca, um vidro, uma lâmina ou uma navalha.
A prática tem consequências graves e
irreversíveis. Entre as complicações mais frequentes encontram-se a dor intensa
devido ao corte de terminações nervosas e de tecido genital, hemorragias,
dificuldades na eliminação de urina ou de sangue menstrual. Como normalmente os
utensílios utilizados não são esterilizados, há risco de transmissão de
infeções durante o procedimento (tétano, hepatite B e VIH/SIDA) que podem levar
à morte.
Sabemos que é crime. Sabemos também que
não é um requisito religioso e que as tradições mudam com os tempos... Por isso,
é tempo de dizer não a todas as práticas prejudiciais à saúde e contrárias aos
direitos humanos de meninas e mulheres. É tempo de reafirmar que Portugal,
acompanhando o repto da ONU e do Conselho da Europa, tudo fará para que a MGF seja
erradicada na próxima geração. Para isso ser possível, precisamos de respeitar
e promover a igualdade de género, o acesso à educação e à saúde, incluindo a
saúde sexual e reprodutiva. A nova Agenda 2030 e a implementação dos Objetivos
de Desenvolvimento Sustentável têm também esta obrigação: dizer não e pôr fim à
MGF é um requisito de desenvolvimento e direitos humanos. Não podemos esquecer os
200 milhões de meninas e mulheres que vivem com algum tipo de mutilação
genital. A própria ONU lança o alerta de que se nada for feito, poderá haver
mais 15 milhões até 2030. E não se pense que a MGF é muito localizada: é verdade
que esta prática ancestral tem uma incidência especial em algumas regiões de
África e da Ásia, mas há casos registados em mais de meia centena de países.
Em Portugal, os casos de MGF são
residuais. Nem por isso devemos pensar que o assunto não tem a ver connosco. A
campanha nos aeroportos portugueses procurava evitar que as meninas sejam
levadas para África e submetidas à excisão. É uma prática corrente entre
algumas comunidades residentes no nosso país. A comunidade guineense,
sobretudo, merece uma atenção e um cuidado particular: na antiga colónia
portuguesa, 44 por cento das mulheres entre os 15 e os 49 anos foram excisadas;
30 por cento das meninas até aos 14 anos sofrem também a mutilação. Há casos
conhecidos de crianças que foram levadas para a Guiné-Bissau para que a mutilação
fosse aí praticada. Lá, como cá, a prática da MGF é crime, mas a tradição tem
um peso muito importante na sociedade guineense e a mutilação continua a ser
praticada junto de algumas etnias apesar de todos os esforços das organizações
locais.
Numa visita de trabalho que fiz à
Guiné-Bissau, a convite das Nações Unidas, tive oportunidade de ver in loco os
efeitos da MGF e constatar o trabalho de entidades como o Comité Nacional Para
o Abandono de Práticas Tradicionais Nefastas à Saúde da Mulher e da Criança. Mas
as dificuldades são mais do que muitas. A presidente do Comité, Fatumata Djau
Baldé, ela própria dada em casamento com apenas nove anos de idade e submetida
a MGF, tem liderado um vasto programa de prevenção e de proteção, mas
confronta-se com uma dura realidade: a de mulheres que, embora sabendo que a
MGF é crime, foram educadas para preservar as tradições e a cultura e
submetem-se à excisão.
Durante o verão, a campanha “O Direito
a Viver Sem Mutilação Genital Feminina” mobilizou serviços, associações,
migrantes e viajantes: as vozes fizeram-se ouvir. Na mesma linha de ação pelos
Direitos Humanos e Desenvolvimento foi aprovado por unanimidade um voto que a propósito do Dia Mundial da
População refere: “Investir nos direitos humanos de todas as pessoas, sem
deixar ninguém para trás, investir no acesso universal aos programas e cuidados
de educação e saúde sexual e reprodutiva é fazer o investimento crucial em
sociedades saudáveis, produtivas, igualitárias e num futuro mais sustentável.”
Pelos direitos, igualdade, saúde e participação de
todas as crianças e jovens, precisamos de mais e melhor cooperação entre países,
parceiros multilaterais e sociedade civil. É tempo de olhar a saúde, a educação
e a cooperação para o desenvolvimento como investimentos onde todas as pessoas
contam.
(Artigo publicado no jornal "Sol", 22.out.2016)
Esta tradição é das que se pode dizer muito má ( por tudo aquilo que aqui foi descrito) por isso há que acabar com ela. Não posso estar mais de acordo.
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